Sobre o natural

Perdão, perdão, perdão, mas estou sem fofocas ao meu respeito e sem vontade de escrever outras coisas além das minhas memórias afetivas suscitadas aleatoriamente. Como boa filha de uma família cheia de crenças, cada uma mais incongruente que a outra, sempre fingi acreditar. Mas nunca acreditei MESMO, de fato, assim, do fundo do coração, em transcendência, divindades nascidas de maneiras misteriosas, ETs, numerologia, zodíaco, runas (mas faço todos os testes on-line que encontro). Achava uma coisa muito louca.

Mas aconteceu um fato que considero inexplicável comigo. Na cidade onde vivo, o povo tem um gosto musical… peculiar. Quando criança, o castigo do meu irmão mais velho era colocar-me na frente da TV, acho que era aos domingos, para assistir ‘As mulatas de Sargenteli’. Se vocês já assistiram Laranja Mecânica, imaginem como isso me afetou. Enfim, criei por caminhos tortuosos meu próprio gosto musical.

Nos desenhos animados antigos fui apresentada a música clássica e ópera (pelo menos passei a saber que existia, né?). Tinha uns vizinhos muito bacanas que, no início nos anos 70 e 80 ouviam soul, black music e Luiz Gonzaga. Meu irmão me mostrou uns tais de Led Zeppelin e Pink Floyd. Nunca curti o Queen (sorry…). Aos poucos fui anexando coisas. Aí, quando finalmente uma FM começou a ser transmitida em nosso remoto território e chegou às nossas caixas Gradiente, descobri quem eu era. O nome do meu guru era José Roberto Marh (ele e Otávio foram essenciais). E a FM era a Transamérica.

Meu Deus, rock nacional e as paradas da Europa e da América (só em Inglês, claro). Eu me tornei uma adolescente ainda mais solitária. E raivosa. Talvez se morasse em Londres, ou Londrina, seria punk. Mas o negócio é que ninguém via, lia ou ouvia nada que me tocava. Nem os amigos de infância. Aqueles que supostamente você deve ficar junto mesmo quando não tem nada em comum, além das experiências, numa convivência calculada para não ser ‘a pessoa estranha’, mas com a amargura no coração de saber que nunca será popular. Nunca enxergarão o quanto você é incrível. Esperto. Bonito. Brilhante.

Enfim. Vamos ao fato inexplicável. Estava em casa, varrendo a sala, sintonizando a Transamérica. Aí começou uma música, uma melodia, uma voz. Eu parei. Corri para ver se encontrava alguma fita cassete para gravar aquela revelação. Não tinha nenhuma. Mas aqueles acordes foram tatuados na minha alma. E eu, que não entendia lhufas de Inglês, não tinha a menor consciência como as letras daquelas músicas iriam retratar vários sentimentos que acreditava serem só meus.

Daí começou a saga, rezar para que o DJ (Hang the DJ!) tocasse a música outra vez. E alguns dias depois, ele tocou. A fita estava lá, só esperando. Hoje, sei a letra (e dezenas de outras da banda) de cor. Na época, o Zé Roberto tocava um blocão de músicas e listava os nomes ao final, eu me perdia, nunca sabia qual era o nome de música e da banda. Só sei que ouvi tantas vezes e fiz uma versão fonética da letra e cantava a plenos pulmões.

A banda era The Smiths. A música era ‘Heavens Knows I’m Miserable Now’. Pouco depois ele passou a incluir nos sets ‘This Charming Man’, ‘How Soon is Now’ e ‘Please, Please, Please Let Me Get What I Want’. Hoje parecem tão batidinhas, tão usadas, mas como os doutores no assunto costumam repetir, são seminais. As ouço mensalmente.

Agora, e o fato extra ordinário? Bom, antes de descobrir o nome da banda e das músicas, um dia pela manhã fui à padaria comprar o pão para o café da manhã (antes da escola). Com sono, tropeço numa revista. Toda suja de lama. Algum carro passou por cima. Era uma revista Bizz (nº 15, de outubro de 1986). Quando vi na capa aquele rosto, aqueles olhos, aquele topete, aquele perfil exótico… não tive dúvidas. Peguei a revista da lixarada em volta, comprei o pão e voltei pra casa.

Depois de limpar, li a entrevista que ele deu. Reescrevi, no meu diário, o primeiro parágrafo daquela matéria, na realidade escrita por um gringo e traduzida pela Bizz. Eis as palavras: “A porta estava entreaberta. “Por que não?”, pensei, e fui entrando. O apartamento parecia se estender por mais de um andar e sem encontrar ninguém no primeiro, subi as escadas até o segundo”. E o tal do Ian Pye encontrou-o, o próprio ser drama contradição amor e ódio em pessoa. Ele dançava furiosa e loucamente ‘Some Girls Are Bigger Than Others’ vestido em um tutu e cercado por flores e cortinas de veludo. O encontro mais que perfeito.

Mesmo antes de ler a matéria, eu sabia que aquelas músicas eram daquela banda e que nós estávamos ligados para sempre. Meses depois, ganhei de presente uma quantia em dinheiro e a primeira coisa que fiz foi ir ao centro da cidade, na mais descolada (e acho que na época única) loja de discos. Tinha que comprar aquele disco. Quando perguntei ao vendedor se eles tinham alguma coisa dos Smiths, ele me olhou de cima a baixo e apontou a prateleira. E lá estava a capa do azul mais bonito. Paguei e peguei ‘Hatful of Hollow’ e o levei pra casa. Para desespero da minha mãe e irmãos.

Quando estava em casa sozinha, colocava o volume no máximo e começava a dançar como ele, sem tutu, claro, mas loucamente. Eu tinha 14 anos, espinhas, seios enormes e um cabelo crespo cortado de forma desastrosa, tipo Tim Maia. Como minha casa não tinha muro na frente, minha dança ritualística era pública. E eu não estava nem aí. Chorava com ‘I Know It’s Over’, ‘Last Night I Dreamt That Somebody Loved Me’, ‘I Won’t Share You’, ‘Sing Me to Sleep’, e qualquer letra que expressasse a saudade do que eu ainda não tinha vivido. Mas era bom. Muito bom. Quando ouvia aquelas músicas, sabia que no mundo existiam outros como eu. E que um dia eu os encontraria. Não foi e não tem sido fácil, afinal:

It’s so easy to laugh
It’s so easy to hate
It takes guts to be gentle and kind
Over, over
Love is natural and real
But not for you, my love
Not tonight, my love
Love is natural and real
But not for such as you and I, my love

Até a próxima!

Sobre o natural

Deixe um comentário